Tratado histórico equilibra interesses em recursos genéticos e conhecimentos tradicionais

Após mais de duas décadas de negociações, os Estados-membros da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) aprovaram, por consenso, o Tratado sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados aos Recursos Genéticos. O acordo, celebrado em uma Conferência Diplomática realizada em Genebra, de 13 a 24 de maio de 2024, busca equilibrar os interesses dos países detentores de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e os das nações que abrigam indústrias de biotecnologia e farmacêutica.

Um dos principais pontos do tratado é o requisito de divulgação obrigatória da origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados utilizados no desenvolvimento de invenções patenteadas. Essa medida visa aumentar a transparência e a rastreabilidade desses recursos, embora a verificação da autenticidade das informações divulgadas não seja obrigatória para os escritórios de patentes.

O tratado também prevê sanções e remédios para casos de não conformidade com o requisito de divulgação, mas a aplicação dessas medidas fica a critério das legislações nacionais. Essa abordagem pode resultar em uma implementação desigual entre os países signatários, potencialmente limitando a eficácia global do acordo. A cláusula de não retroatividade, que isenta as patentes concedidas antes da entrada em vigor do tratado dos novos requisitos de divulgação. Embora compreensível do ponto de vista jurídico, essa disposição pode restringir o impacto do acordo a curto e médio prazo.

O tratado incentiva o estabelecimento de sistemas de informação, como bancos de dados de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, para facilitar o acesso a essas informações pelos escritórios de patentes. No entanto, não especifica como esses sistemas serão financiados, mantidos e atualizados, o que pode afetar sua eficácia a longo prazo. Uma revisão do escopo e conteúdo do tratado está prevista para ocorrer quatro anos após sua entrada em vigor. Essa revisão será crucial para adaptar o acordo às novas tecnologias e desafios que possam surgir, incluindo a possível extensão do requisito de divulgação para outras áreas da propriedade intelectual e para derivados.

Embora o tratado reconheça a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP) e se comprometa a incluir os povos indígenas e as comunidades locais em sua implementação, não fica claro como essa participação será efetivamente garantida e financiada. Além disso, o acordo não aborda diretamente a questão do consentimento prévio informado e das condições mutuamente acordadas para o acesso e utilização de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.

As negociações para este tratado começaram na OMPI em 2001, a partir de uma proposta apresentada pela Colômbia em 1999. Ao longo dos anos, países detentores de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados buscaram proteger seus recursos por meio de iniciativas nacionais, mas essas medidas têm alcance limitado, uma vez que as leis só se aplicam dentro das fronteiras de cada país.

A adoção do tratado por consenso representa um marco nas negociações multilaterais e demonstra a capacidade dos Estados-membros da OMPI de chegar a um acordo sobre questões complexas e sensíveis. O diretor-geral da OMPI, Daren Tang, ressaltou que o acordo é um sinal de que o multilateralismo está vivo e bem na organização, e que o sistema de propriedade intelectual pode evoluir de maneira inclusiva, respondendo às necessidades de todos os países e suas comunidades.

No entanto, povos indígenas e comunidades locais argumentam que as sanções previstas no tratado para quem não cumprir o requisito de divulgação são brandas, e defendem que o consentimento prévio dos povos indígenas envolvidos com a invenção deve ser obrigatório. Essa reivindicação destaca a importância de garantir a participação efetiva desses grupos na implementação do acordo.

Casos de patentes concedidas sobre invenções associadas a recursos encontrados na natureza e originalmente utilizados por povos indígenas, sem que estes sejam incluídos entre os inventores ou titulares e, portanto, sem direito à participação nos lucros advindos da comercialização, evidenciam a necessidade de um equilíbrio entre a proteção da propriedade intelectual e a conservação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais.

O Tratado da OMPI sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados aos Recursos Genéticos representa um avanço significativo nessa direção, mas sua eficácia dependerá da implementação adequada por parte dos países signatários e da capacidade de adaptação do acordo aos desafios futuros. A revisão prevista para ocorrer quatro anos após a entrada em vigor do tratado será uma oportunidade crucial para avaliar seus resultados e promover os ajustes necessários. Além disso, é fundamental que a OMPI e os países signatários trabalhem em estreita colaboração com povos indígenas, comunidades locais e outros atores relevantes para garantir que seus interesses e direitos sejam devidamente considerados e protegidos ao longo do processo de implementação do tratado.

A adoção desse acordo histórico pela OMPI demonstra que, apesar das dificuldades e dos longos anos de negociação, é possível alcançar consenso em questões complexas que envolvem interesses diversos. O tratado estabelece um novo paradigma para a proteção da propriedade intelectual relacionada a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, e serve como um modelo para futuras negociações multilaterais em outras áreas. No entanto, o trabalho não termina com a adoção do tratado. Agora, é essencial que os países signatários se comprometam a implementar suas disposições de maneira eficaz e equitativa, levando em consideração as necessidades e preocupações de todas as partes interessadas, especialmente dos povos indígenas e comunidades locais que têm sido historicamente marginalizados e excluídos dos benefícios derivados da exploração de seus recursos e conhecimentos.

Somente por meio de um esforço contínuo e coordenado entre a OMPI, os Estados-membros, a sociedade civil e os detentores de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, será possível garantir que o Tratado sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados aos Recursos Genéticos cumpra seu objetivo de promover a inovação, a transferência de tecnologia e a repartição justa e equitativa dos benefícios, ao mesmo tempo em que protege a biodiversidade e os direitos dos povos indígenas e comunidades locais.

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