Ultraprocessados no alvo: o grito de Davos por transformação alimentar

A temática dos ultraprocessados ganhou destaque no cenário internacional com um alerta vindo diretamente do Fórum Econômico Mundial, um dos mais respeitados think tanks do meio empresarial global. Um estudo lançado pela entidade, em colaboração com a consultoria Accenture, sinaliza para um imperativo de mudança na qualidade da alimentação oferecida globalmente, deixando claro que práticas regenerativas no setor agropecuário não são suficientes sem uma abordagem mais direcionada à qualidade nutricional.

Os impactos dos ultraprocessados na saúde pública são alarmantes. Segundo o estudo, as doenças não transmissíveis, como cardiopatias, diabetes tipo 2 e câncer, dobraram nos últimos trinta anos, especialmente em países de renda baixa e média, e o consumo de alimentos ultraprocessados é um dos principais responsáveis por essa escalada.

O problema se agrava ao considerarmos que 42% da população mundial não tem acesso a uma dieta saudável, patamar que atinge 90% nos países menos desenvolvidos. Isto contribui para que as doenças não transmissíveis afetem desproporcionalmente os que têm menos condições de obter tratamento adequado. Ademais, a obesidade e as carências nutricionais coexistem em mais de dois bilhões de pessoas — um fenômeno conhecido como ‘fome oculta’.

O estudo evidencia ainda que o consumo de ultraprocessados pode estar associado com o aumento dos casos de depressão. Os custos associados a estes problemas de saúde são substanciais: o valor do consumo alimentar global, calculado em aproximadamente US$ 9 trilhões, é totalmente eclipsado pelos custos socioambientais estimados em US$ 19 trilhões.

Neste panorama desafiador, a atenção se volta também para as ciências da nutrição, que passaram por uma revolução conceitual, exemplificada pela abordagem do Núcleo de Pesquisa em Nutrição e Saúde (NUPENS) da USP. A nova abordagem foca menos nos nutrientes em si e mais no grau de transformação industrial dos alimentos — com a industrialização não sendo um mal por si só, mas o excesso de simplificação nutricional dos ultraprocessados sim.

Um ponto crítico é a conexão entre a diversidade de micro-organismos no solo e em nosso organismo — a simplificação das dietas pela presença de ultraprocessados tem impacto direto na saúde humana e não pode ser resolvida apenas por meio de aditivos.

Neste contexto, recomenda-se uma valorização dos alimentos frescos, da diversidade alimentar e das práticas culinárias locais. A proposta inclui que os produtores sejam remunerados conforme a diversidade e o valor nutritivo de suas culturas e pratiquem uma agricultura comunitária e sustentável, um contraponto ao modelo atual, exemplificado pelos subsídios agrícolas dos EUA, que favorecem apenas alguns poucos produtos.

Enquanto prevê-se que os gastos globais com seguro agrícola cheguem a US$ 1,7 trilhão em 2030, o estudo propõe que a indústria alimentícia elimine ingredientes prejudiciais e desenvolva produtos tão saudáveis quanto os não processados, incentivando assim a valorização de produtos da sociobiodiversidade.

Esse cenário reconfigura o futuro da alimentação global, com implicações particularmente significativas para o Brasil, que ocupa uma posição central neste sistema agroalimentar monocultor e padronizado. O país está diante de uma encruzilhada crítica: manter-se preso a paradigmas do século passado ou abraçar um modelo alimentar que seja ao mesmo tempo saudável, justo e regenerativo. Reduzir drasticamente a presença de ultraprocessados e valorizar a riqueza das tradições culinárias regionais pode ser chave nesta transformação.


Fonte: https://ricardoabramovay.com/2023/12/ultraprocessados-na-mira-de-davoz/

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