O despertar global para as práticas insustentáveis da moda fast-fashion encontra um novo e simbólico palco no deserto do Atacama, no Chile. Marcando um evento inédito, o Atacama Fashion Week converteu as dunas carregadas de roupas descartadas ilegalmente, conhecidas como o ‘cemitério de roupas’, em uma passarela de desfile ecológico. Com mais de 59 mil toneladas de peças acumuladas, a região até então silenciosa evidencia o ciclo nocivo do consumo descartável da indústria têxtil.
A iniciativa, liderada pela ONG Desierto Vestido em colaboração com a Fashion Revolution e Instituto Febre, não apenas promoveu a arte e criatividade na moda sustentável, mas também instigou uma reflexão crítica sobre a responsabilidade multissetorial na gestão de resíduos têxteis. Modelos desfilaram em trajes resignificados, compostos das roupas desperdiçadas no local, complementando a ação com um editorial fotográfico pelo renomado Mauricio Nahas.
Ángela Astudillo, cofundadora da Desierto Vestido, não mediu palavras para expressar a urgência na busca por soluções ao grave cenário: somente um movimento impactante e coletivo poderia restaurar a atenção necessária ao problema que ganha proporções exacerbadas a cada dia. Ressaltou que o Atacama não pode mais permanecer como símbolo de negligência.
Eloisa Artuso do Instituto Febre, por sua vez, destacou a lacuna existente entre o setor da moda e sua devida responsabilidade na agenda climática, chamando atenção para a necessidade de uma redução drástica de emissões para cumprir as metas do Acordo de Paris. As queimas clandestinas de roupas, um evento infelizmente comum no Atacama, contribuem significativamente para o problema, intensificando a contribuição negativa do setor da moda, que já responde por 8 a 10% da emissão global de carbono.
O Pnuma, ligado à ONU, reforça que o uso limitado de itens de vestuário antes de seu descarte é um reflexo do declínio da consciência do consumo. Diante desse cenário, a diretora executiva do Fashion Revolution Brasil, Fernanda Simon, ressalta que a transformação necessária na indústria é multifacetária e depende da ação de todos: marcas, sociedade civil e governos, em prol da transparência e compromissos concretos para mitigar a poluição textil.
A falta de clareza sobre o volume de resíduos gerados pelas marcas, conforme apontado pelo Índice de Transparência da Moda Brasil, é um testemunho do desafio que se coloca diante de nós. Cabe lembrar que a grande maioria das grandes empresas de moda ainda ocultam dados essenciais para o avanço de políticas sustentáveis. O Atacama Fashion Week não apenas trouxe luz à problemática, mas também forneceu um exemplo de como a criatividade e a inovação podem ser aliadas em direção a uma moda mais responsável e ética, numa era onde o descartável não tem mais espaço.